‘Fui rejeitada em um emprego por ter doutorado e ser muito qualificada’

 

A bióloga Vanessa Queiroz, 38, começou a procurar emprego na fase final de seu doutorado, em agosto de 2021. Em fevereiro deste ano, ela obteve o tão aguardado título de doutora em Biomateriais pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), mas segue desempregada um ano depois. Ela imaginava que seus 14 anos de experiência em microbiologia abririam novas portas em sua carreira. No entanto, passagens por empresas como Petrobras, onde atuou como pesquisadora em um projeto por três anos, não convenceram os recrutadores.

Vanessa tem buscado oportunidades na iniciativa privada e em universidades públicas. Ela conta que envia currículos até para vagas que exigem menos experiência do que ela já tem. “Eu ouvi em uma entrevista de emprego que era muito qualificada por ter um doutorado, e o trabalho exigia nível júnior”, diz. Por causa das negativas, a doutora ouviu de amigos que era melhor ela ocultar seus títulos acadêmicos do currículo. Vanessa afirma que rejeitou prontamente a ideia. Sua prioridade é ser contratada pela indústria farmacêutica, onde atuaria como analista de controle de matérias-primas, embalagens e verificaria a qualidade de produtos. Entretanto, ela entende que a realidade do mercado em sua área é outra.

No intervalo de um ano, Vanessa fez quatro entrevistas para pós-doutorado, e um processo seletivo foi cancelado no meio. “Eu vou tentando o que dá. Quero uma coisa, mas não dá para escolher, não tem como.” Enquanto aguarda um “sim”, a doutora em Microbiologia se vira como pode. Vez ou outra faz revisões de textos acadêmicos que rendem R$ 200 por mês usados para pagar as contas da casa onde vive com a família na capital do Rio.

Emprego formal está em queda

Uma pesquisa do CGEE (Centro de Gestão e Estudos Estratégicos), organização social supervisionada pelo MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações), aponta queda no número de pessoas com mestrado e doutorado inseridas no mercado de trabalho formal. De acordo com o documento lançado em 2020, a taxa de emprego formal para mestres caiu de 66,7% em 2009 para 62,2% em 2017. A taxa de emprego formal para doutores passou de 74,8% para 72,3% no mesmo período. Os dados consideram os governos dos ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff, ambos do PT, e Michel Temer (MDB). A instituição ainda não recebeu os dados de emprego formal desses profissionais após Jair Bolsonaro (PL) assumir a presidência. Entretanto, o investimento em pesquisa científica despencou desde que Bolsonaro vestiu a faixa presidencial.

Bolsonaro tem cortado investimento na Capes e no CNPq

Dados do Portal da Transparência mostram que o atual governo destinou R$ 3,83 bilhões para a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) no orçamento previsto para 2022. Em 2015, sob a gestão de Dilma Rousseff, o investimento previsto foi de R$ 7,01 bilhões. Já a quantia prevista no orçamento deste ano para o CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) é de R$ 1,32 bilhão. Em 2013, também sob o comando de Dilma, o valor era quase o triplo: R$ 3,14 bilhões. A Capes, ligada ao MEC (Ministério da Educação) e o CNPQ, vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, são os principais órgãos públicos de financiamento de pesquisadores.

As bolsas federais de pesquisa estão sem reajuste desde 2013, em descompasso com a inflação acumulada de 65% em nove anos. Os bolsistas de mestrado recebem pagamento mensal R$ 1.500 e os de doutorado, R$ 2.200. Já alunos de pós-doutorado são remunerados com R$ 4.100. Em nota, a Capes diz que a “aparente discrepância” se deve “exclusivamente” à exclusão do programa Ciência sem Fronteiras, programa criado no governo Dilma para estimular a formação acadêmica no exterior. A iniciativa foi encerrada quando Temer era presidente. “O orçamento total executado pela Fundação foi de R$ 7.016.165.625,00. Desse montante, o Ciência sem Fronteiras utilizou R$ 3.162.074.980,00.

Em outros termos, o orçamento de fato utilizado nas ações originárias da Capes naquele exercício totalizou R$ 3.854.090.645,00”, declara, em nota. “Já o orçamento autorizado a esta fundação em 2022 corresponde a R$ 3.569.722.993,00, valor bastante próximo ao de 2015”, prossegue a Capes. Procurados, o CNPQ e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações não se manifestaram.

‘Já tive que omitir que tenho doutorado’

Daniela Monteiro, 35, é professora horista do curso de Matemática em uma universidade privada no Rio de Janeiro. Ela trabalha às segundas e quartas-feiras e quer preencher os dias livres com aulas fixas em uma escola de ensino básico na capital fluminense, onde mora. Doutora em Engenharia Mecânica pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), ela esbarra no discurso da superqualificação apresentado por recrutadores. “Eu sempre escuto que meu perfil é de ensino superior, pois tenho mais experiência lá, além de mestrado e doutorado”, declara. Ela trabalhou com aulas para crianças no início da carreira, há mais de 10 anos. Também foi responsável por um projeto para estudantes do pré-vestibular, que foi encerrado após a chegada da pandemia de covid-19.

Nos dias em que não leciona, Daniela faz projetos temporários para instituições de ensino que garantem uma renda adicional ao fim do mês. Diferentemente de Vanessa, Daniela diz já omitiu o título de doutora em um processo seletivo, pois seus concorrentes declararam não ter esse nível de educação. Mesmo assim, ela não foi adiante na entrevista. “Eu levei muito tempo para conseguir meu doutorado. Deveria me alegrar, e não omitir por acreditar que vão me descartar. Me sinto desvalorizada”, desabafa.

Currículo acima da média não garante emprego, dizem especialistas

Carolina Martins, especialista em RH (Recursos Humanos), afirma que mentir no currículo ou omitir informações é uma estratégia muito comum, mas pode ser perigosa para os candidatos. Um dos critérios essenciais que um recrutador avalia é o caráter do entrevistado, diz. “É absurdo isso acontecer porque comprova que o país não investe em educação e na sua valorização. Temos um problema que vai além de emprego.” De acordo com Martins, os recrutadores tendem a rejeitar profissionais mais qualificados por acreditarem que eles sairão na primeira oportunidade em que uma empresa oferecer um salário maior.

O consultor de RH da Fundação FAT (Fundação de Apoio à Tecnologia) Francisco Borges diz que os cursos de mestrado e doutorado oferecidos no país estão desligados da realidade do mercado de trabalho. Segundo ele, a formação dos cursos é mais teórica do que prática, e isso pode afastar mestres e doutores das empresas, que querem profissionais “que trazem soluções”. “Muitas vezes um programa de mestrado e doutorado é voltado a um tema que não tem demanda de mercado”, afirma.

Carolina Martins acrescenta que um profissional com currículo superqualificado pode ficar em desvantagem em comparação com uma pessoa que tem apenas uma graduação ou pós, justamente pela falta de experiência.

 

Publicado primeiro em UOL

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